Já caiu numa poça d’água enquanto brincava na rua? A falsa sensação de que a água poderia ser instrumento impedidor de um arranhão, pode ser facilmente comparada à sensação de tentar mergulhar em um espaço de muitas palavras, promessas…
Talvez eu seja incapaz, na minha inocência primitiva, de realmente ligar os pontos que me façam compreender o porquê, desde o começo, desde antes de existir alguma coisa, tudo já era extremamente catastrófico para um homem quase desconhecido.
Desde àquele quase início, era um coração que sangrava exageros. Solicitava cuidados, exigia respostas, comandava um certo tipo de “terror noturno” no aspecto amoroso, que quer dizer que já trazia medos irreais de uma incerteza sobre suas próprias expectativas, convicções… sonhos. Me assustava. Um pouco. Mas era um coração que sangrava. Era um coração que, para mim, pouco significava e no qual não havia feridas reais, não para mim. Mas manuseei de forma a compreender que poderia machucá-lo, tomei distância e soprei aos ventos o que me parecia certo. Deixei um relógio de pulso ao lado, prometi – sem esperança – que, um dia, conforme ouvisse o relógio e aprendesse a pulsar junto com os ponteiros, ali sim encontraria alguma paz e, talvez, a cura.
Eu realmente voltei para um coração que havia aprendido a coordenar sua batida com os dados do tempo, escondi o relógio e compreendi que estávamos prontos e mais fortes para começar a pulsar em outros ritmos, e em uma linguagem musical algumas coisas pareciam coordenadas com uma direção, mas destino incerto.
Mas o tal coração continuava sangrando e rolando na minha frente, se escondia e reaparecia de formas dramáticas e escrevia sobre como o destino incerto lhe parecia cruel, continuava a me enrolar em casulos que exigiam respostas e promessas que eu não poderia cumprir. Ele não era fácil, tampouco realista. Não era leve. Não era brando. Tampouco livre. Assim como esse que vos fala, também não é.
A condição era que esse mesmo pedaço de carne deveria ser trazido à tona, para que o homem pudesse escrever as linhas do destino, tirar a causalidade de toda uma situação e fosse dono de um tempo ainda por vir. As regras eram rígidas demais, e as correntes que segurariam um ao lado do outro pesavam, enquanto tentava me puxar para alcançar voo. Começamos a desajustar o ritmo, desalinhamos a pulsação para fora dos ponteiros do relógio e eu me parti em milhões de pedaços como numa explosão. As regras, o peso, o impasse, a arrogância, o medo, a frustração, o sangue, a memória, a música… as músicas. Enquanto cada parte de mim sobrevoava ao redor dele, tentou unir todas com a palma da mão delicada e fechou os dedos. Me manteve em sua mão, pensando proteger um pássaro delicado e machucado. Mas eu não era uma ave exótica, muito menos pequena. Eu não sabia voar, nem ao menos gostava de altura. Eu não tinha asas, nem a liberdade de ir e voltar. Foi quando eu notei: ele não me enxergava.
Para merecer o teto de afetos e carinhos, era preciso estar em uma gaiola. Aquele coração se engrandeceu quando percebeu que os olhos do pássaro – que não era pássaro – emanavam o medo de perdê-lo de vista. Dentro da gaiola não cabiam outras histórias, outros pássaros, outros homens nem mulheres, nem a bagagem pesada do passado. E foi quando gritei por um pouco de liberdade, e adoeci, que o homem sumiu da minha vista. E só voltou para cuspir um pouco de maldade destilada em álcool. E eu desejei tão forte e desesperadamente por qualquer afeto, ainda que fosse ficar presa entre os seus dedos. Eu sangrava como aquele coração. Eu procurei o relógio, mas deve ter se perdido junto aos outros milhões de pedaços. E ele nunca o trouxe de volta. O tempo continuava tendo que seguir seus passos e seu coração agora pulsante em sua própria condição. Mas ele colecionava outros pássaros em álbuns, conhecia outros voos e escrevia sobre uma outra mulher.
De alguma forma, quando eu permiti entregar esse mesmo pedaço de carne, que continuava sangrando, que rolava na sua frente, se escondia e reaparecia de formas dramáticas, que escrevia como o medo do destino lhe parecia cruel, o relógio não voltou. O ponteiro ainda era o seu próprio tempo. E era impossível reencontrar minha própria pulsação. Eu não encontraria mais a música. O espaço já era preenchido pelo seu passado, pelo seu tempo e pela sua dor.
Eu encontrei o relógio em algum lugar. Os ponteiros já não emitiam nem som. Eu precisaria encontrar outra forma de compreendê-lo agora. Eu precisaria de mais tempo para me ajustar ao próprio tempo. Ele pode me imaginar da ponta da sua varanda, partindo um voo das luzes que pusemos, me aproximando dos aviões que eu tanto temo. Porque ele nunca vai me enxergar caída numa poça d’água, apenas procurando por alguém que estenda a mão. Ou que me traga um relógio, para que o meu coração ouça o ritmo e o compasso certo para voltar a ser música.