Bebida alcoólica sempre esteve presente na minha vida, mesmo antes de eu ingerir um gole sequer. Esteve presente também em um contexto maior, antes mesmo de eu nascer, tendo (nas duas partes da família) parentes próximos alcoolistas. Raras as vezes que as festas de família não incluíam bebidas. Com mais ou menos 4 anos de idade, eu quase virei um copo de whisky pra dentro da minha boquinha, que mal suportava o gás do refrigerante, o que foi piada durante muito tempo. Mas era evidente que eu tinha uma curiosidade instalada, que eu, honestamente, não seria capaz de distinguir e identificar quando começara. Eu me lembro que cerveja era uma bebida típica nos finais de semana em casa, nada em excesso, mas o suficiente pra despertar em mim uma vontade de experimentar aquela bebida proibida que minha mãe usufruía enquanto cozinhava. E que fique claro, eu não estou e não acusaria meus pais ou parentes como culpados da minha história com relação ao álcool. Acredito que o ambiente tenha sim favorecido de alguma forma, mas fica claro que intrinsecamente isso já estava em mim e que, se tornaria minha responsabilidade, cedo ou tarde, aprender a lidar com isso, tendo em vista que é uma droga lícita presente em vários outros cenários (e mais tarde ainda aprender a lidar com as ilícitas, mas vamos manter o foco aqui).
E quando você realmente começou a beber? Por incrível que pareça (e pode não parecer relevante, mas eu espero conseguir explanar mais adiante), eu tive contato com cigarro antes de efetivamente ter bebido o suficiente para ficar bêbada. Meu pai era fumante, então o acesso ao cigarro era muito fácil também. Eu fumei a primeira vez com 11 anos e o mais “engraçado”, é que eu tanto era uma criança, que em um final de semana eu roubei um cigarro do maço do meu pai, escondi em uma caixa de boneca, e quando o final de semana passasse, eu finalmente estivesse sozinha, eu experimentaria. Bom… eu ODIEI cigarro! Ah, então você não fumou mais, certo? ERRADO! Eu fumei na tentativa de fazer meu corpo se acostumar com aquilo. Mas o texto “néra” de bebida? Sim, mas já identifiquem uma CRIANÇA procurando por um passatempo meio esquisito, que vai fazer sentido (pelo menos, pra mim, faz).
Então, mulher? Quando você começou a beber? A primeira vez que eu fiquei bêbada foi com 16 anos. “Nossa, Naná, jurava que você ia falar uns 12 KKK”. Então, mas lembra que eu tava ocupada lá tentando gostar de cigarro? Cigarro me decepcionou drasticamente. Mas a primeira vez que eu bebi litros de cerveja, eu me senti no paraíso! O fato de eu não ter conseguido o que eu queria com cigarro, fez aumentar muito minha expectativa com relação à bebida e consequentemente, minha satisfação com a mesma. Eu nem sabia o que eu procurava com cigarro, mas eu queria saber o que levava as pessoas a fumar. Eu não sabia o que esperar de bebida, mas queria entender porque usavam tanto. E eu percebi que a bebida me tornava menos tímida (e eu era muito), mais alegre, mais sociável, divertida… então a bebida se tornou uma oportunidade de uma vida um pouco mais animada…
Eu percebi que nem tudo eram flores nos meus dois primeiros relacionamentos amorosos. No primeiro, eu já tinha tomado um pouco de consciência do quanto exagerar na bebida me fazia mal. Então foi a minha primeira tentativa de não beber mais: não beber porque meu namorado não gostava. É um pouco mais complexo do que isso, mas eu me convenci de que estava fazendo isso por outra pessoa (e pra não acabar sozinha). E eu não sei se eu preciso explicar porque isso não deu certo, mas vamos colocar dessa forma: qualquer coisa em mim que me fazia beber em excesso, estava em mim e não no outro, logo, tentar parar de beber nessas circunstâncias era inútil.
Meu segundo relacionamento foi um pouco mais conturbado, eu agora não só tinha consciência do efeito do excesso de álcool em mim, como me deparei com uma agressividade e sensibilidade bem diferentes do que quando eu estava sóbria. Isso não acontecia (ainda) no contexto “família” e nem “amigos”. Eu era (e ainda sou, um pouco, por mais que não pareça) extremamente travada no que diz respeito a externalizar sentimentos, fosse verbalmente, fosse com qualquer tipo de demonstrações, etc. A bebida era um caminho de conseguir expor meu descontentamento sobre aspectos do meu relacionamento, que eu não tinha ainda descoberto ferramentas para lidar ou discutir. Minha imaturidade emocional adicionada à bebida resultou em caos, por vezes. Despertou em mim uma agressividade descontrolada em momentos inoportunos, auxiliou com que eu desenvolvesse um sentimento de vitimismo (porque eu não me responsabilizava pelas coisas que eu expressava bêbada, não era “eu”) e gerou muita confusão sobre só conseguir acessar alguns sentimentos com uso de álcool.
Eu também criei o hábito, bem cedo, de beber sozinha. E se bebida era pra me fazer socializar, me tornar menos tímida… para quê beber sozinha? E aqui foi onde o problema maior se instalou (eu recebi um comentário bem pertinente sobre os storys em que eu trouxe esse assunto à tona, de que não é o vício em si que leva uma pessoa a cometer suicídio, mas que o vício é um aspecto sintomático de um problema maior, que eu concordo completamente e é isso que eu tenho em mente como objetivo de contar tudo isso). O beber sozinha me trouxe a ideia de que eu precisava de algo externo (no caso a bebida, mas poderia ter sido o cigarro, poderia ter sido maconha, outras drogas, poderia ter sido café, açúcar, carboidrato) para me sentir bem comigo. Eu conseguia acessar todos aqueles outros sentimentos, ou conseguia afastar outros, a bebida era útil para relaxar meu corpo e minha mente de coisas que eu preferia evitar trabalhar em mim. Nessa época eu já tinha sintomas de depressão, mas eu estava longe de admitir a mim. E quando eu falo sobre a dificuldade em admitir alguns comportamentos, é porque existia um bloqueio enorme em identificar sentimentos e pensamentos extremamente autodestrutivos. Eu sentia que eu devia ser mais bonita, mais inteligente, mais poderosa, mais magra (talvez eu escreva sobre isso um dia), e beber sozinha era uma forma de tentar calar todos esses pensamentos, afastar partes minhas de mim, não entrar em contato com coisas que me assombravam. E eu aprendi que não dá pra fazer isso. Isso cresceu tanto durante anos, até eu realmente cair em uma depressão mais forte, onde nem a bebida podia me fazer relaxar, nem por um segundo.
SE VOCÊ JÁ TEVE DEPRESSÃO E/OU IDEAÇÃO SUICIDA, ESSA PARTE PODE SER UM GATILHO, ENTÃO NÃO LEIA. PULA ESSE PARÁGRAFO.
Eu pensei muito, mas eu não conseguiria escrever sobre o dia que eu tive ideação suicida, mas eu posso descrever um pouco sobre o quão assustador é, e o quão gradativo foi. E claro, como a bebida se estabeleceu nessa conjuntura. Eu fiquei, pelo menos, 6 meses estranhando muito a minha própria imagem, pensamentos e comportamentos. Era como não conseguir acordar de manhã, levantar mesmo assim, fazer tudo no automático, me cobrar incessantemente por isso, literalmente ver o mundo com menos cores, não sentir entusiasmo com nada, conversar por praxe, rir por conveniência, não querer voltar pra casa e junto com tudo isso, me preocupar muito com tudo e ficar extremamente estressada com absolutamente tudo que saia do meu roteiro de dia “normal”. Eu tinha cada vez mais pensamentos de que minha vida não tinha importância, porque seria tudo automático até eu morrer, então, que eu morresse logo. E eu me convencia com “tá tudo bem, eu não vou me matar, só que eu não me importaria se eu morresse hoje”. E em outros momentos “mas se eu quisesse me matar, como eu faria?”. Nesse momento, eu planejava minha própria morte sem nem me dar conta. Eu comecei a beber muito. Muito mais do que o meu normal, que já era muito. E vale dizer também, que durante todo esse tempo, inúmeras coisas aconteceram pra que isso se agravasse. Pensamentos como esse que só me ocorriam uma vez na semana, começaram a aparecer mais vezes. Mais ideias sobre meu próprio suicídio surgindo enquanto eu escovava os dentes, tomava banho, caminhava para o trabalho, ia dormir… Até o dia que eu comecei a sonhar com a minha própria morte. Eu postava em redes sociais músicas como Mad World “The dreams in which I’m dying are the best I’ve ever had” (os sonhos nos quais eu morro são os melhores que eu já tive), Migraine “Sundays are my suicide days…” (domingos são meus dias suicidas), e aqui fica um adendo: se vocês virem alguém postando qualquer coisa desse tipo, fiquem atentos sim! Nossa mente pede ajuda mesmo sem a gente notar, de formas variadas. Sonhar com a minha própria morte foi o ápice do fundo do poço que eu estava (isso não faz sentido, eu sei). Eu fui tomada por um medo imensurável de mim mesma. Eu era ali, a maior ameaça pra mim. A pior companhia também. Eu bebia. Às vezes eu bebia pra matar essa parte horrível de mim. Às vezes eu bebia pra matar a parte boa.
Eu não estou me expondo à toa, mas tudo que eu vivi e o que eu tenho observado de pessoas próximas ou não a mim, é o prazer do descontrole quando se está sob efeito de alguma substância. É o precisar usar algo para relaxar o corpo, quando eu desconheço formas saudáveis de lidar com os meus próprios conflitos internos. É o querer fugir do fato de que eu preciso mudar de emprego, de relacionamento, de costumes, mantendo sempre presente alguma coisa que me afasta desse enfrentamento. É o tornar natural a dor de cabeça do dia seguinte, os claros sinais do corpo de que aquilo é demais, de me prejudicar, me ferir a troco de uma vida falsamente mais leve e divertida. E quando tudo isso fica demais e não dá pra fugir, existe um risco eminente de tentar usar álcool na atitude suicida. E esse é o maior motivo pelo qual eu quis escrever sobre álcool específicamente.
Sobre resignificação.
A primeira vez que minha psicóloga me disse isso, eu quase ri na cara dela, o que não ia ser muito agradável pra ninguém, convenhamos. Eu achei que fosse só um nome bonito pra “parar de beber”. Eu voltei a tentar parar de beber, dessa vez com menos sucesso ainda. Eu claramente não bebia tanto quanto antes, pelo menos, não sempre, mas eu ainda bebia frequentemente. Era difícil estar em um ambiente com bebida e não beber! Meu “parar de beber” não durava uma semana. E isso aqui vai parecer discurso de convertido da igreja universal, mas não é! Calma! Terapia me ajudou muito, mas ter feito as pazes comigo, trazendo uma fé pra minha vida, foi essencial. E não virei crente, na verdade eu conheci um pouco sobre Xamanismo, e fez sentido pra mim. Mas poderia ter sido QUALQUER COISA, poderia ter sido catolicismo, umbandismo, yoga, música, pintura, poderia ter sido minha própria faculdade, jardinagem, etc. Qualquer atividade ou ritual que te ajude a se conectar com você mesmo, é essencial. Eu conheci a maior felicidade da minha vida o dia que eu consegui entrar em contato comigo, com todas as partes. Que eu consegui me perdoar pelo mal que eu me causei, que aceitei que eu não sou perfeita, que eu realmente me enxerguei e me percebi como ser humano incrível mas também falho.
Uma mulher que eu sigo há muito tempo e que sempre que eu posso, cito nos meus textos, a Flávia Melissa, já contou várias vezes sobre como ela se libertou de algumas drogas recreativas, do quanto isso gerou também mudanças no seu círculo social. Eu sempre tive receio disso, como parar de beber, quando a maior parte dos meus amigos bebe? Como não beber em uma festa ou balada?
A resignificação foi autoexplicativa no momento que eu tive a chance de usar o álcool, em um dia que fugir de mim seria delicioso demais, mas eu não quis! E como chegar nisso? Como eu disse e acreditando na individualidade de cada um, eu não consigo criar nenhum tipo de caminho pra salvação, mas o dia que essa conexão com você mesmo acontece de verdade, ela se torna uma energia que se irradia, é quase palpável. Eu chamei isso de deus interior (o que é só um nome), poderia ser o que chamam de felicidade, de gratidão, de amor. Esse sentimento é como um pilar, é transformar você mesmo no seu próprio lar, estar confortável com quem você é. Automaticamente o mundo todo entra em sintonia. Esse sentimento faz parte de um autoconhecimento (que, no meu caso, eu adquiri boa parte em terapia) que consequentemente eleva também sua autoestima. Com tudo isso mais desenvolvido é extremamente difícil, quase impossível, querer sair disso. Ficar bêbada me leva à uma situação oposta dessa conexão, é quase como me perder dentro de mim de novo. Então, talvez resignificação não seja parar completamente de beber, mas procurar um meio saudável de lidar com o que me faz perder o meu autocontrole, com o que me faz querer ficar distante do que me incomoda em mim e bebida se torna um segundo plano, algo que eu vá usar sem perder a noção do que é limite para mim. Eu estou nesse processo de entender que, eu nunca soube o que era limite, porque eu nunca tinha realinhado a minha pessoa às minhas estruturas física, mental e espiritual (repetindo que espiritualidade não é religião).
Eu não entendi completamente a resignificação, pelo simples motivo de que eu ainda tenho muito trabalho de autoconhecimento a ser feito. Eu ainda escorrego em excessos de álcool, manias, redes sociais, compulsões por comida, etc. Mas isso foi algo incrivelmente novo pra mim, foi estar em um estado de consciência muito diferente de tudo que eu tinha sentido até hoje. Eu consegui beber muito pouco e me satisfazer por gostar do sabor da bebida, eu consegui não beber quando realmente isso me faria muito mal e consegui identificar ter passado do meu limite, em um estado de embriaguez que, antigamente, seria “só o início”.